terça-feira, 16 de julho de 2019

Estudo mostra que a infecção pelo vírus zika pode causar disfunção da bexiga



Já não há dúvidas, a Bexiga Neurogênica (BN) está entre as complicações relacionadas à Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV), de acordo com os novos resultados da pesquisa realizada no Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Uma recente publicação se soma ao estudo publicado em março de 2018, que apresentou à comunidade científica internacional a BN como uma sequela da SCZV. 

Estes novos resultados, que focam no aspecto urodinâmico do problema, foram decorrência da continuidade e aprofundamento da pesquisa iniciada em 2016 pelo Ambulatório de Urodinâmica Pediátrica do IFF/Fiocruz. No artigo, intitulado Neurogenic bladder in the settings of congenital Zika syndrome: a confirmed and unknown condition for urologists, os autores chamam a atenção de especialistas sobre a importância de investigar esta nova causa de Bexiga Neurogênica, para prevenir a lesão renal. 

O artigo sobre esse novo estudo foi divulgado no veículo científico internacional Jornal of Pediatric Urology, e, para conhecer mais sobre a sua importância, a seguir a médica Lucia Monteiro esclarece os detalhes da pesquisa: 

O que é a Bexiga Neurogênica?
LM: É uma disfunção da bexiga causada por dano neurológico, que é diagnosticada através do estudo urodinâmico. Os sintomas mais comuns são a infecção urinária e a incontinência ou a retenção urinária, que nem sempre são percebidos em crianças pequenas. Mas o risco de complicações graves é alto (infecções recorrentes, entre outros, que podem inclusive chegar ao comprometimento dos rins). Por isso é importante estar atento porque o diagnóstico precoce e o início oportuno do tratamento podem mitigar o impacto da doença e promover, a longo prazo, a saúde do paciente. 

Como surgiu a pesquisa que relacionou a condição de BN com a Síndrome Congênita do Zika Vírus?
LM: Nós fomos os primeiros no mundo a descobrir que esses pacientes tinham bexiga neurogênica e isso só foi possível porque no IFF/Fiocruz já havia uma equipe multidisciplinar, coordenada pela Maria Elizabeth Lopes Moreira, que vinha investigando os pacientes com SCZV quando a síndrome era uma coisa nova. Quando nossa equipe, do Ambulatório de Urodinâmica Pediátrica viu as alterações neurológicas encontradas nas ressonâncias magnéticas realizadas para o controle da microcefalia destes pacientes, observamos que as áreas que controlam o sistema urinário inferior também estavam afetadas. E suspeitamos que esses pacientes poderiam desenvolver BN. Escrevemos o projeto para investigar as sequelas urológicas, e após aprovação pelo CEP/IFF, submetemos ao Edital N° 14/2016 do MCTIC/FNDCT-CNPq/MEC-CAPES/MS-Decit. Fomos selecionados e passamos a integrar as coortes nacionais para a prevenção e combate ao vírus zika. Na primeira fase da pesquisa, avaliamos 20 pacientes e todos (100%) tinham BN de alto risco. Temos uma vasta experiência, de mais de 25 anos tratando pacientes com esta disfunção miccional, e isso nos ajudou a concluir que todos os pacientes com SCZV poderiam estar afetados, e precisavam ser investigados.

Por que uma segunda pesquisa?
LM: Na verdade não é uma segunda pesquisa, e sim uma segunda publicação resultante da continuidade e aprofundamento da pesquisa iniciada em 2016. Embora a primeira publicação tenha sido muito importante por ser a primeira a confirmar BN como sequela da SCZV, a população de estudo ainda era pequena. O Brasil já tinha mais de três mil pacientes afetados, a maioria na região Nordeste, que precisavam também ser beneficiados. Nesta segunda publicação, triplicamos o número de pacientes investigados e continuamos encontrando bexiga neurogênica em todos (100%). Também aprofundamos as questões relacionadas às situações de risco para o sistema urinário e escrevemos o artigo buscando alertar os especialistas que continuava desconhecendo o problema.

Qual é a importância destes segundos resultados?
LM: Esses novos resultados acabaram de vez com as dúvidas e confirmaram que a bexiga neurogênica é realmente uma sequela da síndrome. Tanto que atualmente não consideramos mais a indicação da avaliação urodinâmica nestes pacientes como parte da pesquisa, mas sim como uma obrigação clínica, já que nossa experiência mostra que esse é um problema que tem tratamento, e que o diagnóstico e a intervenção precoce podem reduzir em até três vezes o risco destes pacientes desenvolverem lesão renal. Anteriormente, como não existia comprovação científica da relação entre a condição de BN e a SCZV, o estudo urodinâmico não fazia parte do protocolo de atendimento nessas crianças. 

Para um paciente sem tratamento, qual é o maior risco de ter uma infecção urinária? 
LM: É lesar o rim. Cada episodio de infecção urinária grave tem potencial para gerar uma cicatriz no rim, que ficará para sempre. Um rim continuamente agredido por infecções pode evoluir para insuficiência renal, e todos nós conhecemos os problemas sofridos por pacientes que necessitam de hemodiálise e transplante. Além disso, a BN pode gerar graves problemas sociais, relacionados à incontinência urinaria crônica e as visitas recorrentes ao hospital e internações para o tratamento de infecção urinaria, entre outros. E isso tudo pode ser evitado com realização do exame para comprovar o diagnostico e iniciar o tratamento.

Qual é a importância do exame urodinâmico em pacientes com SCZV?
LM: A urodinâmica é o único exame que diagnostica com certeza, por isso é o padrão ouro na bexiga neurogênica. Além disso, ajuda a orientar e a avaliar o tratamento e por isso, repetir o exame é muito importante. Como analisa o enchimento e o esvaziamento da bexiga, a urodinâmica é capaz de evidenciar situações de risco, como bexigas muito pequenas, com pressões muito elevadas ou que não se esvaziam completamente durante a micção, um problema constantemente observado em pacientes com SCZV e que causa infecção urinária. Com a segunda publicação nós mostramos isso. O ideal seria que estes pacientes fizessem o exame desde o primeiro mês de vida. Temos que lembrar que a BN é uma das sequelas que podem ser tratadas e normalizadas no âmbito da SCZV. Quanto mais cedo começamos a tratar, maior a probabilidade de melhorar a resposta do rim.

O que acontece agora?
LM: Já sabemos da obrigação de investigar o sistema urinário de todos os pacientes com alteração neurológica devido a SCZV, e de orientar estas famílias sobre a importância e as vantagens do tratamento urológico na evolução do paciente. Não é mais só o interesse de pesquisa, temos responsabilidades com estes pacientes e precisamos lutar para aumentar a adesão e evitar as faltas que vem impedindo o acompanhamento adequado. Estamos também revisando os dados referentes á evolução e resposta ao tratamento, para que possam ser compartilhados com as famílias e a comunidade científica, incluindo uma avaliação exaustiva de todos os episódios de infecção urinaria, com o apoio da médica do Ambulatório de Urodinâmica Pediátrica do IFF/Fiocruz, Glaura Cruz e da bolsista Julia Oliveira. No âmbito nacional, estamos ampliando cooperações e realizando capacitações para que as sequelas urológicas possam ser investigadas e tratadas, principalmente na região Nordeste que é a mais afetada, permitindo que mais crianças possam ser beneficiadas.  

O tempo está passando, as crianças ficando mais velhas e estamos perdendo a janela de oportunidade para reverter o processo de cronificação desta doença urológica. As evidências tem apontado para bexigas neurogênica de alto risco, com grande parte dos pacientes fazendo retenção urinaria e vários já tendo sido internados por infecção urinaria grave. Estamos tentando sensibilizar as famílias e os profissionais de saúde para a importância de realizar o exame, comparecer com regularidade as consultas e fazer o tratamento. 

Quais são as dificuldades atuais? 
LM: A falta de conhecimento de que a SCZV causa BN atrasa a investigação e o tratamento. Por isso a população e os profissionais devem ser sensibilizados para os riscos que a síndrome pode causar ao trato urinário, de maneira que tratamentos adequados sejam iniciados para evitar danos renais irreversíveis.  Meu incomodo é saber que existem muitas crianças ainda desassistidas. Até onde vai o meu conhecimento, além de nós, somente as crianças das coortes de Macaíba (RN) e de Campina Grande (PB) estão sendo investigadas e tratadas, e esses são os centros com os quais temos cooperação. Alguns outros profissionais estão começando a investigar, com base nas nossas publicações. Embora ainda não possamos afirmar se permanecerá assim por longo prazo, a maioria dos pacientes que já foram avaliados estão apresentando boa resposta ao tratamento. Atualmente, acreditamos que todas as crianças com SZCV têm potencial para desenvolver BN, e por isso todas precisam ter acesso ao exame urodinâmico para o devido diagnóstico e o correto tratamento. Mas ainda falta muito para isso se tornar realidade. 

Qual é o panorama atual no tratamento para BN em pacientes com SCVZ?
LM: Estamos evoluindo, mas um dos maiores problemas é o absenteísmo. Em geral, os pacientes faltam muito aos exames e às consultas. A criança com SCZV tem muitos problemas e muitas demandas. Como os sintomas urológicos são muito silenciosos, é muito comum que estes sejam negligenciados pelas famílias em privilégio de outros que são mais visíveis. Na Bexiga Neurogênica, o sintoma vai ser percebido lá na frente, quando as complicações aparecerem. Acredito que isso faça com que muitos pais marquem o exame e não compareçam. Existe também uma rejeição à realização do cateterismo, por medo e desconhecimento. Temos alguns pacientes cujos pais não aceitavam a realização do exame até o momento que a criança desenvolveu uma infecção urinária grave, consequência da doença. Uma das nossas metas atuais é reduzir o absenteísmo e para isso estamos contando com o apoio das especialistas do Ambulatório de Urodinâmica Pediátrica do IFF/Fiocruz, Grace Araújo e Jo Malacarne, e da bolsista Nathalia Lopes, para confirmação prévia de comparecimento às consultas e exames e com reforço do contato e acompanhamento com as mães. 

Fonte:  Fiocruz


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